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02/09/2020
Dois mestres


Nilton Santos e o amigo Armando Nogueira - Foto: Arquivo pessoal


A amizade entre Nilton Santos e o jornalista botafoguense Armando Nogueira não é segredo para ninguém. A admiração e respeito eram mútuos. Em diversos momentos, o escritor dedicou frases e crônicas ao ídolo de General Severiano. Um dos mais famosos, vamos reproduzir a seguir, pois vale a pena ler e reler. O texto foi extraído do livro O Voo das Gazelas, de 1991.

A Alegria de um Coroa

Acordou bem cedinho. Estava louco para rever a sua cidade. Abriu a janela do apartamento e deu de cara com uma colossal manhã de sol, dessas que só mesmo o Rio de Janeiro é capaz de aprontar em pleno inverno. Pois a história que agora te conto, leitor, passou-se no recente mês de agosto. 

Para não perder tempo, que as férias eram brevíssimas, o nosso amigo tomou um xicrinha de café preto, enfiou no bolso uma pêra, pra mais tarde, e saiu pelo Aterro do Flamengo, feliz da vida, de bermudas e tênis "Conga". 

Caminhava, contente entre as árvores do Aterro, boas amigas que ele já não via há dez anos, quando deixou o Rio para ir cuidar de seus passarinhos em Brasília.

Pelas tantas, quis tomar sol. Despiu a camisa de malha, deitou na arquibancada do campinho de futebol e assim ficou um tempão, entregue ao regozijo de merecido repouso. Tamanho era o sossego que até chegou a tirar uma soneca.

- Ei, moço! bom-dia!

Era a voz de um dos três garotos que chegavam com uma indisfarçável secura de bola.

- Quer fazer um racha com a gente? A gente joga dois-contra-dois.

Deitado estava e deitado respondeu, no embalo: 

- Vamos lá, pelada é comigo mesmo! 

Resoluto, levantou-se, sacudiu as pernas e foi logo entrando no campo. Um campo de barro. O dono da bola, um menino de seus treze anos, fez a apresentação da turma:

- Eu sou o Marcio, esse aí é o Dico e aquele é o Leo.

Nem quis saber o nome do coroa. Queria mais era começar logo o racha.

- Olha aqui, vai ser eu e o Dico contra o senhor e o Leo.

Pela rapidez da escalação, o coroa sentiu que devia estar entrando numa fria: o bom de bola, ali, devia ser o Dico. Discretamente, deu uma olhada e viu que o Leo não tinha a menor pinta. De qualquer modo, chamou de lado o Leo e propôs uma chave: O Leo lá na frente, ele mais atrás. Antes, porém, um teste sem aparentar outra intenção a não ser aquecer o corpo; na verdade, queria mesmo era saber se o Leo era de bola. Tocou a bola na direção do Leo para ver que bicho dava. A bola beliscou a canela do Leo.

O coroa chegou a pensar em desistir. Um sujeito de 61 anos, meio barrigudo, cheio de cabelos brancos:

- Meu Deus, o que é que estou fazendo aqui no meio desses meninos?

O diabo é que ele já tinha aceito o desafio. Não ficava bem correr da raia. Afinal de contas, não era a primeira, nem seria a última vez que a vida metia o nosso coroa em batalhas indigestas.

No meio do campo, o dono da bola vai cantando as regras do jogo: “a partida é de cinco! Quem fizer cinco primeiro, ganha. Não vale gol direto. Não pode pegar a bola com a mão, só se já começar jogando no gol.

E como ninguém sequer pensou em ficar no gol, a partida começa com os quatro na linha: dois de cada lado. No centro do campo de terra batida, a bola de futebol de salão, por sinal que já um tanto surrada.

A saída, lógico, é do Marcio. Marcio toca pro Dico, Dico pro Marcio, que tenta um drible. O coroa, vigilante, rouba a bola e contra-ataca. Procura o Leo. O Leo ficou lá atrás, paradão, sem saber pra onde ir. O coroa então chuta do meio do campo. Gol!

- Não vale - grita o Marcio - eu avisei ao senhor que não vale gol direto. O senhor tem que passar a bola pro Leo! Ou o Leo pro senhor!

Gol anulado, começa tudo de novo. Saída com o Marcio. O coroa pede tempo. Cochicha uma tática no ouvido do Leo.

Bola em jogo. O Leo dispara e vai ficar plantado bem juntinho da baliza, como pediu o coroa.

Em dez minutos, o time do coroa já está ganhando de três a zero, três gols do Leo. O esquema funciona bem, mas o jogo é incessante, lá e cá. Agora mesmo, o Dico acaba de fazer o dele: três a um. E o Marcio delira com a reação.

Nova saída. O coroa arranca pelo meio dos dois, parece um foguete; vai em frente e entrega, mais uma vez, em baixo dos paus para o Leo fazer o quarto gol.

A essa altura, o coroa já passeia pelo campo, absoluto. Por sua vez, o time adversário já esta literalmente descadeirado.

- Vai - pereba, berra o Marcio, colérico, para o Dico - Vai nele! Ocê não disse que o coroa não é de nada? Toma a bola dele, palhaço!

A dissensão nas hostes inimigas é profunda. O Marcio e o Dico vão acabar saindo na porrada. Pelo menos é o que pressente o coroa, achando, por isso, que o melhor é liquidar logo essa conta.

Vamos, então, mais que depressa ao quinto e derradeiro gol dessa inesquecível partida. Porque inesquecível, leitor, já, já saberemos.

O Marcio faz um passe longo para o Dico. O demônio do coroa, como sempre, advinha a jogada, corta o centro com o peito em pleno ar e, antes que a bola caia no chão, amortece na coxa direita. Da coxa, a bola escorre para o peito do pé e pronto: uma, duas, três... o coroa começa uma sucessão de embaixadinhas; faz nove!, em plena corrida. Na décima, depõe a bola na boca do gol, bem em cima da linha:

- Tai, Leo, faz o quinto e acaba logo o jogo.

O Marcio, uma fera, vai apanhar a bola e nem volta para dizer até logo. O Dico sai de fininho, mal dá um tchau. O Leo, não, o Leo dá um abraço legal no companheiro de time.

O coroa senta de novo na arquibancada, tira do bolso uma pêra, dá uma mordida triunfal e fica ruminando, em silêncio, o bendito fruto de uma bela vitória.

Os três meninos foram embora sem saber que deram uma certa alegria ao coroa Nilton Santos, velho amigo de infância de todas as bolas do mundo, também chamado "A Enciclopédia do Futebol".



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